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Rastreamento de depressão: e um comentário sobre rastreamento de suicídio

Transtorno depressivo maior é causa de elevado sofrimento para as pessoas acometidas e responsável por alta carga de doença e custos para a população e para a sociedade. Ela é definida por pelo menos um episódio depressivo maior na ausência de mania ou hipomania. Um episódio depressivo, por sua vez, consiste em humor deprimido e/ou perda do interesse ou prazer, causa desconforto ou incapacidade significativa e dura pelo menos 2 semanas. Costumam fazer parte do quadro sentimentos de inutilidade, pensamentos sobre morte e mesmo sintomas somáticos como fadiga, anorexia e alterações no sono.

Esta é a doença psiquiátrica mais comum na população e, assim, a mais encontrada na atenção primária. Considerando dados de 2019, a prevalência de depressão no Brasil é aproximadamente 10%, com tendência de aumento. Além disso, apenas metade dos pacientes procuraram atendimento, mostrando elevadas barreiras no cuidado e oportunidades para melhorias.

Nesta postagem iremos revisar o rastreamento de depressão em adultos em geral. Para essa discussão é importante lembrarmos dos três pontos básicos que devem ser considerados ao decidir realizar de uma medida preventiva:

  • A carga da doença:
    mortalidade, prevalência, impacto na qualidade de vida;
  • A qualidade do teste:
    acurácia, simplicidade, custos, aceitabilidade;
  • O tratamento naqueles que testam positivo:
    eficácia, custo, segurança.

Eficácia, benefícios e riscos

Há um volume considerável de pesquisas avaliando a eficácia do rastreamento de depressão em adultos. Uma revisão sistemática, encomendada pelo
órgão norte-americano USPSTF
, identificou oito ensaios clínicos randomizados que testaram intervenções combinando triagem, acompanhamento, tratamento estruturado e monitoramento sistemático. A metanálise desses trabalhos demonstrou redução significativa na presença de sintomas depressivos (odds ratio de 0,60). Vale destacar que todos os ensaios foram conduzidos em contexto de atenção primária.

A detecção precoce em depressão é particularmente relevante, considerando que a condição não tratada está associada a desfechos adversos como pior qualidade de vida, aumento do risco de suicídio e pior prognóstico de doenças crônicas, incluindo diabetes e cardiopatias. Em termos de magnitude de efeito, estima-se que psicoterapia gere uma redução média padronizada de 0,4 pontos e farmacoterapia 0,2 pontos (ambas consideradas de tamanho pequeno a moderado).

Além disso, deve-se estar atento a que, no processo de rastreamento, é provável que se diagnostiquem outras doenças psiquiátricas, como distimia, transtorno do humor bipolar, luto patológico. Isso reforça a necessidade de cuidados na avaliação diagnóstica após o rastreamento positivo (como veremos na próxima sessão).

Na decisão sobre o uso de medidas preventivas, é fundamental considerar também os riscos associados ao rastreamento e ao tratamento subsequente. Ensaios clínicos randomizados indicam que intervenções psicológicas não aumentam o risco de piora dos sintomas nem estão associadas a eventos adversos significativos. Quanto à farmacoterapia, evidências de mais de 500 estudos clínicos e observacionais mostram que eventos graves são incomuns com o uso de antidepressivos de segunda geração, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina. No entanto, persiste certa incerteza quanto ao risco de suicídio: embora dados observacionais apontem um leve aumento (menor que 0,5%), o número de eventos é considerado pequeno e a associação é incerta.

Em resumo, as evidências atuais indicam que
programas de rastreamento de depressão na atenção primária oferecem benefícios
(de magnitude de efeito moderada) à saúde dos pacientes, com riscos associados geralmente baixos. Esses resultados, no entanto, vêm de estudos que integram o rastreamento a estratégias bem definidas de engajamento, tratamento e acompanhamento. Portanto, a
efetividade do rastreamento depende diretamente da capacidade de diagnosticar e manejar adequadamente os casos identificados.

Instrumentos e diagnóstico

Existe um grande número de ferramentas para rastreamento de depressão. As mais avaliadas e testadas são o Patient Health Questionnaire (PHQ) nas versões de 2 e 9 perguntas, o rastreamento de duas perguntas, a ferramenta da OMS, além de instrumentos dirigidos para grupos específicos, como o Geriatric Depression Scale (GDS) para idosos e o Center for Epidemiologic Studies Depression Scale (CES-D) para o período perinatal.

Não existe definição de uma ferramenta ser preferencial sobre outra. Neste sentido, parece mais importante levar em conta aspectos práticos do uso delas, como facilidade de administração, número de perguntas e interpretação e validação na população que será implementada. Aqui apresentaremos a estratégia baseada no PHQ, por ter sido validado para português do Brasil e permitir autoaplicação.

Para maior agilidade e para limitar o número de pessoas que realizam a versão mais longa do questionário PHQ, pode-se utilizar a abordagem de 2 passos. Inicialmente utilizam-se as duas primeiras perguntas do PHQ em uma versão binária (sim ou não) e, se alguma delas for positiva, aplica-se o instrumento completo (Tabela 1). Se ambas as perguntas são negativas, considera-se o rastreamento negativo.

Vale ressaltar que, além de servir para rastreamento, o PHQ-9 pode ser utilizado para acompanhamento da gravidade dos sintomas e da resposta ao tratamento. Ele também pode ser usado para definir a intensidade do manejo inicial. Pacientes com primeiro passo positivo e pontuações entre 5 e 9 no PHQ-9 devem ser considerados com rastreamento negativo e reavaliados em aproximadamente 3 meses. De outro lado, aqueles com pontuações acima de 10 (especialmente se acima de 20) devem ter avaliação (no mesmo dia) para sintomas de depressão, mania e funcionalidade.

Perguntas iniciais

  1. Nas últimas duas semanas, quantos dias o(a) sr.(a) teve pouco interesse ou pouco prazer em fazer as coisas?
  2. Nas últimas duas semanas, quantos dias o(a) sr.(a) se sentiu para baixo, deprimido(a) ou sem perspectiva?

O rastreamento de depressão em idosos é recomendado rotineiramente, assim como em adultos em geral. Este é um grupo particularmente exposto, por ter maior risco, mais resistência para procurar atendimento e maior número de doenças clínicas complicando o quadro. Além disso, manifestações depressivas podem se confundir com efeitos colaterais de medicamentos ou sintomas de outras doenças. O PHQ-9 foi validado em pessoas idosas, com desempenho semelhante ao observado em adultos mais jovens. Ainda assim, a escala GDS é preferível em pacientes com mais morbidades, pois ela não tem perguntas sobre sintomas somáticos, que podem ter mais confundidores neste grupo.

Tabela 1
. Versão em português do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9). Extraído da referência 5.

Apesar das vantagens das ferramentas de rastreamento, nenhuma delas tem especificidade suficiente para o diagnóstico de depressão. Assim, indivíduos que pontuam acima do ponto de corte (p.ex., PHQ-9 ≥10) devem passar por uma avaliação diagnóstica criteriosa antes da confirmação do diagnóstico. Isso se justifica pela possibilidade de falsos-positivos e pela necessidade de distinguir o transtorno depressivo maior de outras condições. A confirmação deve seguir critérios formais, como os do DSM-5.

Essa avaliação também deve incluir a avaliação para transtorno bipolar, por meio da investigação de episódios prévios de mania ou hipomania, além de considerar diagnósticos diferenciais como luto, distimia, transtorno disfórico pré-menstrual e depressão induzida por substâncias. Também é fundamental excluir causas orgânicas que mimetizam depressão, como hipotireoidismo ou anemias, por meio de história clínica e exames direcionados para hipóteses (TSH, hemograma, função renal e hepática, entre outros).

Um comentário sobre rastreamento de suicídio

Globalmente, estima-se que cerca de 800 mil pessoas morram por suicídio todos os anos, configurando um dos principais desafios de saúde pública. Aproximadamente metade das pessoas que se suicidam apresentam transtornos de humor, principalmente depressão maior e transtorno bipolar. Além dessas condições, diversos fatores de risco estão associados ao comportamento suicida, incluindo uso abusivo de álcool e drogas, acesso a meios letais, eventos de vida estressantes e diagnóstico recente de doenças crônicas ou terminais.

Entre os fatores predisponentes, destacam-se os transtornos psiquiátricos em geral, histórico familiar de comportamento suicida, tentativas prévias, experiências adversas na infância e vulnerabilidade socioeconômica. A força da associação varia de moderada a forte, sendo a presença de transtornos mentais, uso de substâncias e histórico familiar os determinantes mais consistentes. Apesar disso, os modelos clínicos disponíveis para avaliar risco apresentam limitações: variam em conteúdo, grau de validação e muitas vezes foram desenvolvidos para outros propósitos, como avaliar depressão ou a gravidade da ideação suicida atual, sem boa capacidade de prever o risco futuro.

Existem poucos estudos disponíveis sobre rastreamento de suicídio. Nenhum instrumento de triagem foi avaliado em mais de um estudo. Apenas um ensaio clínico randomizado de curto prazo incluiu 443 pacientes em atenção primária com rastreamento positivo para depressão. Esse estudo não demonstrou diferença significativa na ideação suicida entre os grupos após duas semanas, registrando apenas uma tentativa de suicídio em todo o seguimento. Em resumo, as evidências atuais são
insuficientes para definir se há benefícios (e os riscos) com o rastreamento de risco de suicídio em adultos e idosos.