Intoxicação por metanol: reconhecimento e manejo rápido

No segundo semestre de 2025, o Brasil registrou um aumento no número de casos de
intoxicação por metanol
. O Ministério da Saúde classificou a situação como um “Evento de Saúde Pública” e ativou uma sala de situação para monitoramento e resposta. Até meados de outubro, cerca de 500 casos foram notificados como suspeitos, com 29 confirmações, sendo 20 na cidade de São Paulo. Um evento até então raro ganhou relevância nacional.
O metanol é um tipo de álcool, ou seja, um composto orgânico com pelo menos um grupo hidroxila (-OH) em sua estrutura. O exemplo mais conhecido é o etanol, usado em desinfecção e bebidas alcoólicas. Já o metanol, também chamado de “álcool da madeira”, tem uso industrial, como solvente e combustível para veículos e aeronaves.
Fora de surtos como o atual, a intoxicação por metanol é rara. Mesmo rara, é um desafio ao médico de emergência, pela dificuldade de reconhecimento e pela urgência do tratamento antes da confirmação laboratorial. Nesta postagem, veremos como suspeitar da intoxicação, quais exames solicitar e os primeiros passos do manejo, com base nas recomendações atualizadas do Ministério da Saúde frente ao aumento recente de casos.
Conceitos bioquímicos e fisiológicos
A intoxicação por metanol pode ocorrer por diferentes vias (oral, inalatória ou dérmica), mas a única forma clinicamente relevante de absorção é a ingestão oral. O metanol é rapidamente absorvido pelo trato gastrointestinal, com pico plasmático de metanol em cerca de 30 a 60 minutos.
O metanol é pouco tóxico por si só. A toxicidade decorre da metabolização hepática em formaldeído e, depois, ácido fórmico — este último o principal responsável pela lesão tecidual e acidose metabólica. A enzima álcool desidrogenase (ADH), a mesma que metaboliza o etanol, atua nessa conversão inicial. O ácido fórmico é eliminado lentamente, com participação da vitamina B9 (ácido fólico).
A toxicidade do ácido fórmico ocorre principalmente por dois mecanismos. O primeiro é o comprometimento do metabolismo mitocondrial, impedindo a geração de energia (ATP) no nível celular. O segundo é a indução de acidose metabólica grave pelo acúmulo de ácido fórmico. O ácido fórmico tem maior afinidade pelo sistema nervoso central e pelo nervo óptico, tecidos que também são mais sensíveis à hipóxia celular; os rins também costumam ser afetados.
Diagnóstico
A suspeita clínica de intoxicação por metanol deve ser levantada em pacientes que ingeriram bebida alcoólica de procedência desconhecida e que, entre 6 e 72 horas após a ingestão, evoluem com sintomas como náuseas, dor abdominal, cefaleia intensa, confusão mental ou alterações visuais (visão borrada, escotomas, amaurose). Mesmo que alguns destes sintomas sejam sobreponíveis à intoxicação por álcool etílico, a presença de queixas visuais e a persistência (ou mesmo piora) após algumas horas de observação não são marcadores de intoxicação por metanol. Em pessoas com intoxicação combinada (metanol + álcool etílico) os sintomas podem ser mais protraídos e menos floridos, pela competição de ambos pela enzima ADH. Os critérios do Ministério da Saúde para casos suspeitos e confirmados estão apresentados nos
Quadros 1 e 2.
O contato com o centro de informações toxicológicas local é sempre recomendado
.
Quadro 1. Definição de caso suspeito de intoxicação por metanol. Extraído da referência 1
Paciente com história de ingestão de bebidas alcoólicas que apresente, após 6 a 72 horas da ingestão, persistência ou piora de um ou mais dos seguintes sinais e sintomas:
- Sintomas compatíveis de embriaguez acompanhado de desconforto gástrico ou quadro de gastrite;
- Manifestações visuais, incluindo visão turva, borrada, escotomas ou alterações na acuidade visual;
- Podendo evoluir para rebaixamento de consciência, convulsões, coma, alterações visuais persistentes (cegueira, escotoma central, atrofia óptica);
Quadro 2. Definição de caso confirmado de intoxicação por metanol. Extraído da referência 1
São casos confirmados clinicamente que apresentem os sinais e sintomas de casos suspeitos e:
- Exame laboratorial compatível com acidose metabólica (pH arterial < 7,3 e bicarbonato < 20 mEq/L) e gap osmolar superior a 10 mOsm/kg; e/ou
- Exame laboratorial positivo para metanol em dosagem sérica ou na urina.
Uma vez que se suspeite do diagnóstico, recomenda-se a solicitação de exames para auxiliar no diagnóstico e identificar complicações:
- Gasometria arterial (identificação de acidose metabólica), idealmente com dosagem de cloro para cálculo do ânion gap. Se este não estiver disponível com a gasometria, solicitar separado;
- Eletrólitos séricos que não estiverem disponíveis junto com a gasometria (Na⁺, K⁺, Cl⁻, bicarbonato);
- Ureia, creatinina, glicemia e lactato (se não disponível na gasometria);
- Osmolaridade plasmática medida;
- Hemograma e função hepática;
- ECG seriado (para avaliar distúrbios de condução que podem desenvolver);
- Dosagem de metanol (se disponível, não é necessária para iniciar o tratamento);
O achado de acidose metabólica grave (bicarbonato < 8 mEq/L) com ânion gap elevado em um paciente com história compatível com intoxicação (consumo de álcool de procedência preocupante) é altamente suspeito para o diagnóstico.
Acrescenta-se que existem poucas causas alternativas para este perfil laboratorial, a citar cetoacidose diabética e situações de hipelactatemia extrema (como
status
epilético, choque circulatório grave e isquemia mesentérica).
Uma revisão aprofundada de acidose metabólica e gap osmolar foge do escopo desta postagem, mas apresentamos um pequeno resumo no
Quadro 3
. Acrescenta-se que os valores destas medidas não devem ser interpretados de forma absoluta, mas levados em conta de forma dinâmica. No início da intoxicação, o metanol ainda não foi metabolizado, o que leva a um gap osmolar elevado com ânion gap normal. À medida que o metanol é convertido em ácido fórmico, o gap osmolar diminui e o ânion gap aumenta, acompanhando a acidose metabólica.
Quadro 3.
Cálculo e interpretação do ânion gap e gap osmolar no contexto da intoxicação por metanol. Adaptado da referência 5.

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A confirmação laboratorial da intoxicação pode ser feita por dosagem de metanol ou de seu metabólito (ácido fórmico), preferencialmente em sangue, com coleta ideal nas primeiras 72 horas para identificação antes da biotransformação completa do metanol e seus metabólitos. A urina pode ser usada como material complementar. As amostras de sangue devem ser coletadas em tubo com EDTA. Preencher o tubo com EDTA até 75% acima da marca mínima indicada e manter a amostra refrigerada (entre 4 e 8 °C) se a análise for realizada no mesmo dia da coleta ou congelada (-20 °C) para casos em que há necessidade de transportes mais longos. A análise deve ser feita por laboratórios definidos por cada estado, sejam da rede CIATox ou da polícia científica.
Tratamento
O manejo da intoxicação por metanol inclui medidas gerais e o manejo específico da situação.
O Ministério da Saúde disponibilizou um fluxograma para guiar o atendimento
. Entretanto, deve-se ficar atento a eventuais atualizações, em especial quanto à disponibilidade de medicamentos específicos.
Manejo geral
Quanto ao manejo geral, o primeiro passo é o controle ventilatório e circulatório. A avaliação inicial deve seguir os princípios gerais de controle de via aérea, respiração e circulação. Em muitos casos, será necessário suporte avançado, com intubação orotraqueal.
Se houver suspeita ou confirmação de acidose metabólica grave, esses pacientes devem ser considerados como portadores de “via aérea fisiologicamente difícil”. Mesmo que o pH esteja levemente reduzido, a gravidade pode ser subestimada caso o paciente esteja compensando com hiperventilação. De forma semelhante, deve-se evitar bloqueadores neuromusculares e sedação profunda, para preservar a ventilação espontânea. O uso de cetamina pode ser vantajoso. Os ajustes do ventilador devem priorizar ventilação minuto elevada, com gasometrias frequentes para guiar a ventilação. Deve-se evitar sedação excessiva e paralisia prolongada, que podem limitar a capacidade do paciente de ventilar acima dos parâmetros do ventilador.
A acidose metabólica deve ser corrigida de forma imediata, especialmente nos casos graves, pois contribui diretamente para a toxicidade tecidual, incluindo lesão do nervo óptico. A meta é manter o pH entre 7,35 e 7,45, o que favorece a eliminação do ácido fórmico e reduz sua penetração em tecidos. Alguns autores recomendam o uso de bicarbonato na indução da intubação, para minimizar o risco da acidose relacionada à apneia transitória.
Caso ocorram convulsões, estas devem ser tratadas prontamente com benzodiazepínicos. Barbitúricos são a segunda linha, em casos refratários. Evita-se o uso de fenitoína, devido ao risco de cardiotoxicidade nesse contexto. Se houver sinais de hipocalcemia (como QT prolongado no ECG ou convulsões refratárias), recomenda-se administrar gluconato de cálcio.
A hemodiálise é indicada nos casos graves para remover o metanol e o ácido fórmico, corrigir a acidose e restabelecer o equilíbrio metabólico. Ela deve ser mantida até que o pH, o ânion gap e o gap osmolar se normalizem e os sinais clínicos de toxicidade desapareçam. As principais indicações são:
- Coma, convulsões ou novo déficit visual;
- pH ≤ 7,15 ou acidose refratária;
- Ânion gap > 24 mEq/L;
- Nível sérico de metanol elevado (ajustar para tratamento específico realizado);
- Gap osmolar elevado quando dosagem de metanol não estiver disponível;
- Disfunção renal.
Medidas específicas
Nos casos suspeitos ou confirmados de intoxicação por metanol, a administração precoce de um inibidor da ADH é a principal medida terapêutica específica, pois isso limita a formação de ácido fórmico e o dano tecidual. Os antídotos disponíveis são o fomepizol (primeira escolha) e o etanol (alternativa quando o fomepizol não estiver acessível), conforme apresentado no
Quadro 4
. A escolha entre eles dependerá da disponibilidade. É muito importante destacar que
a administração do antídoto não deve ser adiada até a confirmação laboratorial
, considerando a gravidade potencial do quadro.
Seguindo as recomendações do Ministério da Saúde, a inibição da ADH está indicada na ingestão de qualquer quantidade de metanol associada a sinais objetivos de toxicidade:
- Acidose metabólica com ânion gap elevado (pH < 7,3 e HCO₃⁻ < 20 mEq/L);
- Gap osmolar > 10 mOsm/kg sem causa alternativa aparente;
- Concentração sérica de metanol > 20 mg/dL (se disponível).
Quadro 4.
Doses e diluição de fomepizol e etanol. Adaptado da referência 4.

Uma vez identificado o caso suspeito ou confirmado, a unidade de saúde deve notificar a Secretaria Estadual de Saúde, que fará o pedido formal à Coordenação-Geral de Assistência Farmacêutica e Medicamentos Estratégicos. A dispensação de álcool etílico deve seguir os protocolos definidos, incluindo preenchimento de formulário específico e justificativa clínica da solicitação. A administração deve ser feita em ambiente hospitalar, com monitoramento rigoroso. É importante atentar para que há
nota técnica normatizando o uso do tratamento do etanol.
Além do tratamento específico, o uso de ácido fólico (mais disponível) ou folínico é medida complementar. Como ele é parte importante da fase final da metabolização do ácido fórmico, garantir níveis elevados de folato pode garantir uma resposta mais rápida. O ácido fólico é recomendado na dose de 1-2 mg/kg mg IV a cada 4h por 24-48h; a dose máxima é de 50-70 mg/dose.
Por fim, é importante lembrar que a intoxicação por metanol é uma condição de notificação imediata. Todos os casos suspeitos ou confirmados devem ser comunicados pelos canais oficiais (Disque-notifica 0800-644-6645, e-mail
notifica@saude.gov.br
ou ficha específica de intoxicação por metanol), além de registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). A notificação rápida permite acionar as autoridades sanitárias e implementar medidas de vigilância, controle e prevenção.