Infecções respiratórias de repetição - Quando investigar imunodeficiência?

Infecções respiratórias estão entre os quadros mais comuns na prática clínica. Resfriado comum, rinossinutise, faringite, pneumonia são eventos frequentes na saúde das pessoas e motivos recorrentes de visitas à atenção primária e pronto-atendimentos. Tratamento sintomático e, eventualmente, antibióticos são suficientes para o manejo. Na grande maioria das vezes, pacientes com infecções de repetição não têm defeito imune associado. Ainda assim, é importante atenção a estes casos, pois infecções frequentes e/ou graves são uma das apresentações clássicas de imunodeficiência humoral.
Infecções recorrentes em adultos geralmente se devem a três grupos de causas: alterações anatômicas, imunodeficiências secundárias e, mais raramente, imunodeficiências primárias. A Tabela 1 resume os principais fatores anatômicos e causas secundárias de imunossupressão que devem ser investigados nesses casos. Embora a maioria das imunodeficiências primárias se manifeste na infância, a imunodeficiência comum variável é uma condição caracterizada por deficiência de imunoglobulinas que pode ser diagnosticada apenas na vida adulta e deve ser considerada como a principal imunodeficiência primária nesse grupo.
Nesta postagem revisaremos o quadro clínico de infecções respiratórias de repetição, fatores a serem observados nestes quadros, bem como quando e como iniciar a avaliação de imunodeficiência.
Tabela 1. Causas comuns de infeções respiratórias recorrentes. Extraído e adaptado da referência 1.

Avaliação clínica
Na avaliação de um paciente com infecções recorrentes e suspeita de imunossupressão, a história clínica deve incluir a busca pela presença de doenças crônicas subjacentes (principalmente diabetes, síndrome nefrótica, doenças autoimunes e câncer – vide
Tabela 1
). O uso atual ou prévio de medicamentos imunossupressores é uma das principais causas de imunossupressão em adultos e deve ser investigado cuidadosamente. O histórico familiar deve prestar especial atenção a quadros infecciosos recorrentes (inclusive mortes inesperadas) e consanguinidade. Múltiplos casos familiares de autoimunidade ou câncer também devem ser considerados, pois podem indicar imunodeficiências primárias.
Além da entrevista, é essencial recuperar ou solicitar dados microbiológicos (culturas, testes de sensibilidade) e exames de imagem que comprovem ou caracterizem infecções passadas e atuais. O exame físico pode revelar anormalidades estruturais ou sinais de doenças crônicas subjacentes, como tosse persistente, alterações do reflexo de deglutição, baqueteamento digital, sibilos ou estertores associados à bronquiectasia. Linfonodos aumentados, hepatoesplenomegalia e cicatrizes de infecções anteriores (como em membranas timpânicas ou pele) também podem fornecer pistas importantes para o diagnóstico de imunodeficiências.
Em relação à
sinusite de repetição,
as principais causas são rinite alérgica não tratada, terapia antimicrobiana inadequada e questões anatômicas (especialmente em casos unilaterais). Um paciente que melhora, cujo quadro retorna nas duas primeiras semanas após o término do antibiótico sugere que seja a mesma infecção com recaída (e não novas infecções). De outro lado, quadro de sinusites bacterianas recorrentes, em especial se associada com otite média e infecções do trato respiratório inferior, sugere imunodeficiência comum variável.
Pacientes com
pneumonia recorrente
restrita a uma mesma região pulmonar deve-se considerar primariamente questões anatômicas. As causas podem ser extrínsecas (compressão brônquica, neoplasia) ou intrínsecas (corpo estranho, bronquiectasia, broncomalácia). Alterações traqueais, como traqueomalácia ou traqueobroncomegalia, também podem causar infecções recorrentes localizadas ou difusas. Outro grupo de causas são aquelas que levam a aspiração crônica ou recorrente (epilepsia, abuso de álcool ou outras drogas, refluxo); estas geralmente afetam as bases pulmonares e segmentos posteriores. Pessoas com pneumonias que acometem regiões diferentes do pulmão tendem a ter um processo sistêmico em curso, como fibrose cística, discinesia ciliar (frequentemente associada com situs inversus) e imunossupressão secundária (
Tabela 1
). Ainda em quadros pulmonares recorrentes, deve-se estar atento a eventos que mimetizam pneumonia, como vasculites, pneumonite de hipersensibilidade, aspergilose pulmonar alérgica).
Quando suspeitar de imunodeficiência primária?
O número de infecções respiratórias é altamente variável de pessoa para pessoa. Ainda assim, imunodeficiência primária que deve ser suspeitada na presença de algum dos sinais de alarme do quadro abaixo.
Sinais de alarme para suspeita de imunodeficiência primária. Adaptado da referência 1.
- Quatro ou mais infecções que exigem antibiótico por ano (ex.: sinusite, bronquite, pneumonia, otite média com perfuração);
- Infecções recorrentes, de difícil resposta ou que exigem antibiótico intravenoso Duas ou mais infecções bacterianas graves (meningite, osteomielite, celulite, sepse);
- Duas ou mais pneumonias com comprovação radiológica em até três anos, especialmente se houver necessidade de hospitalização, recuperação lenta ou necrose pulmonar;
- Infecção com localização ou agente incomum;
- Abscessos profundos recorrentes (pele, linfonodos, órgãos internos);
- Diarreia crônica com perda ponderal, especialmente por Campylobacter ou Cryptosporidium;
- Candidíase oral persistente sem uso recente de antibiótico;
- Febres recorrentes, prolongadas e sem causa definida;
- História familiar de imunodeficiência primária.
Além das infecções, outros sinais indiretos podem indicar imunodeficiência, como cicatrização prejudicada (problema na função ou número de neutrófilos) ou bronquiectasias inexplicadas. Vale destacar que a maioria dos casos de infecção recorrente está relacionada a causas secundárias ou anatômicas (
Tabela 1
), que devem ser sempre investigadas antes de se considerar imunodeficiência primária.
Avaliando imunossupressão
Padrões de imunossupressão
As infecções que o paciente desenvolve podem dar dicas sobre qual parte do sistema imune está prejudicada; ou seja, cada tipo de comprometimento tem um padrão usual de apresentação.
Defeitos na produção de imunoglobulinas ou do complemento
costumam se manifestar por sinusites ou pneumonias de repetição, bacteremias, meningites e gastroenterites. Isto marca infecções por bactérias encapsuladas, como Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae tipo b e Neisseria meningitidis, além de parasitas como Giardia, Cryptosporidium e Campylobacter.
Já nos defeitos da
imunidade celular
, especialmente envolvendo os linfócitos T, predominam infecções causadas por vírus "benignos" em indivíduos imunocompetentes (citomegalovítus, vírus Epstein-Barr e outros herpesvírus), micobactérias (incluindo formas não tuberculosas) e fungos como Candida, Cryptococcus e Pneumocystis jirovecii.
Deficiências na função dos neutrófilos
, por sua vez, estão relacionadas a infecções cutâneas e de partes moles com formação de abscessos, sendo comuns os agentes catalase-positivos, como Staphylococcus aureus, bacilos gram-negativos, Aspergillus e Nocardia. Vale destacar que algumas condições não se encaixam em padrões clássicos; por exemplo, a síndrome de hiper-IgE (síndrome de
Job) e a deficiência de adesão leucocitária podem combinar infecções bacterianas e virais graves, exigindo uma abordagem diagnóstica mais abrangente.
Avaliação imunológica inicial
Em pacientes com infecções respiratórias recorrentes sem causas anatômicas, funcionais ou imunossupressão secundária identificadas (ver
Tabela 1
), deve-se considerar uma imunodeficiência primária como hipótese diagnóstica. A principal suspeita nesses casos é a imunodeficiência comum variável, mas outros defeitos na produção de anticorpos ou formas leves de doença granulomatosa crônica também podem estar presentes.
O
exame inicial recomendado é a dosagem sérica de IgG, IgA, IgM e IgE
, que funciona como triagem para defeitos humorais. No entanto, alguns pacientes podem apresentar níveis totais normais, mas ter alterações nas subclasses de IgG, especialmente IgG2 e IgG4, que devem ser dosadas quando a suspeita persiste. Também é possível que o defeito esteja na produção de anticorpos específicos, como resposta inadequada à vacinação contra germes encapsulados (ex.: pneumococo). Nesses casos, é indicado
encaminhamento ao imunologista,
especialmente quando a suspeita clínica de imunodeficiência persiste mesmo após a exclusão ou tratamento das causas secundárias.