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Imunodeficiências primárias em pediatria: quando suspeitar?

As imunodeficiências primárias (IDP) são um grupo heterogêneo de doenças genéticas que afetam componentes do sistema imunológico inato e adaptativo, resultando em maior suscetibilidade a infecções, doenças autoimunes e neoplasias. Sua prevalência geral é em torno de 1 a cada 2.000 nascimentos, embora esse número possa ser subestimado devido à subnotificação e ao diagnóstico tardio. Há predominância no sexo masculino e em populações com alta frequência de consanguinidade. De acordo com o componente do sistema imunológico primariamente envolvido, são classificadas em humorais (ou de anticorpos), celulares (ou de células T), combinadas (envolvendo alterações de células B e T), fagócitos e do sistema complemento.

As imunodeficiências primárias geralmente se manifestam como infecções de repetição por micro-organismos específicos ou por germes de baixa virulência (oportunistas). Na maioria das vezes, os quadros infecciosos apresentam evolução prolongada, resposta inadequada à antibioticoterapia habitual e elevado risco de complicações e hospitalizações.

As IDPs são classificadas com base nos componentes do sistema imunológico afetados, incluindo defeitos na imunidade humoral (anticorpos), imunidade celular (linfócitos T), imunidade combinada, fagocitose e sistema complemento. Entre as mais prevalentes estão a deficiência seletiva de IgA, a imunodeficiência comum variável (ICV) e a imunodeficiência combinada grave (SCID).

O diagnóstico e o tratamento precoces destas doenças são essenciais para garantir a sobrevida e prevenir sequelas. Além disso, a identificação do defeito genético responsável pela IDP torna possível o aconselhamento destas famílias e o diagnóstico pré-natal e do estado de portador do defeito.

Sinais de alerta para imunodeficiências

Com o intuito de facilitar o raciocínio clínico acerca dos pacientes que carecem de investigação, a Fundação Jeffrey Modell (www.info4.org) juntamente com a Cruz Vermelha Americana publicaram, em 1999, os
Dez Sinais de Alerta para IDP
, que estão listados abaixo. A presença de 1 ou mais destes 10 sinais de alerta torna obrigatória a investigação para uma possível IDP.

Esses sinais foram adaptados ao nosso meio pelo Grupo Brasileiro de Imunodeficiência (BRAGID – www.bragid.org.br).

Os 10 Sinais de Alerta para Imunodeficiência Primária na Criança

  1. Duas ou mais Pneumonias no último ano
  2. Quatro ou mais novas Otites no último ano
  3. Estomatites de repetição ou Monilíase por mais de dois meses
  4. Abcessos de repetição ou ectima
  5. Um episódio de infecção sistêmica grave (meningite, osteoartrite, septicemia)
  6. Infecções intestinais de repetição / diarreia crônica
  7. Asma grave, Doença do colágeno ou Doença auto-imune
  8. Efeito adverso ao BCG e/ou infecção por Micobactéria
  9. Fenótipo clínico sugestivo de síndrome associada à Imunodeficiência
  10. História familiar de imunodeficiência

Na época de criação desses critérios haviam sido identificados menos de 50 defeitos imunológicos primários. A especialidade era exercida basicamente por pediatras e havia o conceito que as imunodeficiências primárias eram doenças muito raras, acometendo 1 em cada 10.000 a 100.000 indivíduos.

Com a evolução do conhecimento e o acesso a novas tecnologias, o número de defeitos imunológicos cresceu rapidamente, alcançando, segundo a mais recente classificação, 485 doenças que afetam primariamente o funcionamento do sistema imune e que, em sua maioria, apresentam determinantes genéticos. Também, houve a constatação que o termo imunodeficiências não seria o mais adequado para nomear esse grupo de doenças, pois as manifestações clínicas não decorrem apenas de deficiências, mas também de uma desregulação do sistema imune, apresentando-se não somente com infecções. Nesse contexto, o termo de Erros Inatos da Imunidade (EII) foi adotado para designar esse conjunto heterogêneo de doenças.

10 Sinais de Alerta para Erros Inatos da Imunidade Atualizados

  1. História familiar de erro inato da imunidade ou consanguinidade;
  2. Infecções com frequência aumentada para a faixa etária e/ou de curso prolongado ou não esperado e/ ou por microrganismos não usuais ou oportunistas;
  3. Diarreia crônica de início precoce;
  4. Quadros alérgicos graves;
  5. Eventos adversos não usuais a vacinas atenuadas (BCG, febre amarela, rotavírus, tetra viral);
  6. Características sindrômica;
  7. Déficit do crescimento;
  8. Febre recorrente ou persistente, sem identificação de agente infeccioso ou malignidade;
  9. Manifestações precoces e/ou combinadas de autoimunidade, em especial citopenias ou endocrinopatias;
  10. Malignidades precoces, incomuns e/ou recorrentes.

Como investigar?

Após uma história clínica detalhada do paciente com infecção de repetição se é possível direcionar a investigação laboratorial para o compartimento imunológico mais provavelmente acometido. Inicialmente deve-se solicitar um hemograma com diferencial e culturas de secreções ou sangue para todos os pacientes, causas secundárias como defeitos anatômicos no local da infecção, uso de medicações ou comorbidades também devem ser achados com história clínica e exame.

As imunodeficiências primárias mais prevalentes na infância são as deficiências de IgA, de subclasses de IgG, a hipogamaglobulinemia transitória da infância, a imunodeficiência comum variável e a deficiência de resposta específica a antígenos polissacarídicos. Essas condições representam a maioria dos casos diagnosticados em crianças com infecções recorrentes, sendo fundamental a investigação dirigida nesses contextos clínicos.

Exames iniciais

  • Hemograma:
    atentar para a contagem de neutrófilos e linfócitos, preferencialmente em momento em que paciente não apresente sinais de infecção. Linfopenia é observada na maioria dos defeitos de células T. Se a contagem de neutrófilos de um lactente estiver persistentemente elevada na ausência de quaisquer sinais de infecção, deve-se suspeitar de deficiência de adesão leucocitária. As contagens normais de linfócitos são mais altas na infância e na primeira infância do que mais tarde na vida. O conhecimento dos valores normais para contagens absolutas de linfócitos em várias idades na infância e na infância é crucial na detecção de defeitos de células T. Pistas adicionais do hemograma incluem a ausência de corpúsculos de Howell-Jolly, o que contradiz a asplenia congênita. O tamanho ou a contagem normal de plaquetas excluem a síndrome de Wiskott-Aldrich;
  • Dosagem de imunoglobulinas:
    Quando houver suspeita de imunodeficiência, a obtenção dos níveis de IgG, IgA, IgM e IgE pode ser uma estratégia útil, visto que os defeitos de anticorpos são o tipo mais comum de imunodeficiência. Os níveis de imunoglobulina devem ser interpretados dentro do contexto de dados normativos específicos para a idade;
  • Sorologia para HIV:
    em casos de suspeita de IDP (ou EII), deve ser descartada a hipótese de infecção por HIV.

Outros exames mais detalhados como imunofenotipagem de linfócitos, testes genéticos e avaliando citocinas devem ser solicitados e avaliados por imunologista com experiência em erros inatos da imunidade. Caso os exames de triagem imunológica sejam normais e outras causas de infecções recorrentes tenham sido afastadas, os pacientes devem ser encaminhados imediatamente para serviços especializados de Imunologia, para que seja realizada a investigação avançada adequada e o tratamento específico seja iniciado, propiciando a melhora do prognóstico e da qualidade de vida desses pacientes.

Teste do pezinho

O teste de triagem neonatal é feito a partir de 48h de vida por meio de uma pulsão no calcanhar do recém-nascido e, até pouco tempo, era possível detectar apenas seis doenças por meio desse exame. Porém, graças ao desenvolvimento de marcadores de doenças, utilizando a técnica do Trec (detectam defeitos nos linfócitos T) e do Krec (detectam defeitos nos linfócitos B), agora é possível a triagem diagnostica de mais de 50 imunodeficiências congênitas.

  • O TREC (T-cell Receptor Excision Circles) mede a quantidade de círculos de DNA produzidos durante o desenvolvimento dos linfócitos T no timo, órgão essencial para a maturação dessas células. Uma baixa contagem de TREC indica deficiência na produção de linfócitos T, como ocorre na Imunodeficiência Combinada Grave (SCID), condição rara e potencialmente fatal se não diagnosticada precocemente.
  • O KREC (Kappa-deleting Recombination Excision Circles) avalia a produção de linfócitos B, responsáveis pela produção de anticorpos. Uma baixa quantidade de KREC pode indicar agamaglobulinemia, caracterizada pela ausência de anticorpos e alta suscetibilidade a infecções recorrentes.

Ambos os testes são realizados a partir de uma pequena amostra de sangue colhida do calcanhar do bebê, da mesma forma que o teste do pezinho tradicional, e permitem identificar precocemente imunodeficiências graves, como a Síndrome Síndrome da Imunodeficiência Severa Combinada Grave (SCID) e a agamaglobulinemia.

A SCID compreende um grupo heterogêneo de doenças que possuem como característica comum o comprometimento no desenvolvimento e função dos linfócitos T, B e em alguns casos das células natural killer (NK). Múltiplos defeitos genéticos em mais de 30 genes podem causar a SCID e consequentemente a linfopenia de forma que existem diferentes mecanismos fisiopatológicos que causam ausência ou disfunção das células T, dependendo do defeito genético acometido. O problema pode afetar o desenvolvimento das duas linhagens de células imunológicas, “T” e “B”, apenas as “T” mas com disfunção secundária da linhagem “B”.

A inclusão desses exames no teste do pezinho ampliado representa um avanço importante para o diagnóstico precoce de erros inatos da imunidade, aumentando a detecção de doenças que antes passavam despercebidas e reduzindo a mortalidade infantil por essas condições. Além disso, evita complicações graves relacionadas à vacinação com vacinas de vírus vivos atenuados, como a BCG, que deve ser adiada até a confirmação do resultado do teste.

Condutas iniciais e tratamento

O tratamento varia de acordo com o tipo e a gravidade da doença. Cerca de 50% dos pacientes teriam de fazer a infusão periódica de imunoglobulina, que oferece anticorpos e protege de muitas infecções. Crianças diagnosticadas com algum tipo de SCID morrem no primeiro ano de vida se não tiverem o tratamento adequado, que na maioria das vezes, se refere ao transplante de células tronco hematopoiéticas (TCTH). Por isso, a detecção precoce e a viabilidade da estratégia terapêutica são fatores cruciais para a sobrevida do bebê. A terapia de reposição de gamaglobulina intravenosa ou subcutânea é o tratamento preconizado da agamaglobulinemia. A aplicação da imunoglobulina humana é feita por via intramuscular, intravenosa e subcutânea a cada 21 dias, em ambiente ambulatorial para monitorização do paciente quanto à ocorrência de reações adversas tais como calafrios, sintomas gripais, taquicardia, entre outros. Para alguns pacientes é necessária também a introdução de antimicrobianos como medida profilática. Relato de caso de pacientes com agamaglobulinemia ligada ao X que se submeteram ao transplante de células tronco-hematopoiéticas (TCTH) tem mostrado resultado promissores. A sobrevida de pacientes com agamaglobulinemia ligada ao X é de até 10 anos de vida, devido as complicações pulmonares, sepses ou meningite.

Pacientes com suspeita de EII devem ser avaliados por imunologista, bem como pacientes com alterações de Trec e Krec no teste do pezinho. É importante mencionar que a conduta ideal é o adiamento das vacinas por microorganismos vivos até o resultado do teste do pezinho, sobretudo caso haja alteração de Trec e Krec. Infelizmente o Trec e o Krec não estão amplamente disponíveis pelo SUS, sendo incorporado apenas em alguns municípios.