Estado de Choque Emocional: como reconhecer e manejar

Nosso cérebro opera, em grande medida, com base em previsões (Zacks et al., 2007). Cada ação que realizamos está orientada por uma expectativa de resultado. Ao pressionar uma tecla no teclado, esperamos que a letra correspondente apareça na tela. Ao buscar uma criança na escola, presumimos vê-la saindo pelo portão. Essas previsões são parte fundamental do funcionamento adaptativo do cérebro, sustentando a sensação de continuidade e controle sobre o ambiente. Um trauma representa uma ruptura abrupta e avassaladora dessas expectativas, tornando o mundo subitamente imprevisível, incontrolável e ameaçador.
O organismo, então, ativa sistemas de defesa especializados. Tais reações envolvem mudanças rápidas e marcantes em diversas funções neurofisiológicas — desde a percepção sensorial e o processamento cognitivo até reações autonômicas e motoras. Circuitos relacionados à detecção de ameaças são mobilizados no cérebro. Essa intensa carga emocional desencadeia a liberação de hormônios do estresse, como a adrenalina e o cortisol, o que pode favorecer estados extremos de choque emocional (Roozendaal et al., 2009).
Reações de choque emocional
Toda a cascata fisiológica desencadeada por um trauma pode resultar em diferentes tipos de comportamentos, cujo objetivo último é a sobrevivência. Neste artigo, abordaremos três dessas reações, selecionadas por sua relevância clínica e pela associação com maior risco de desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
O
pânico peritraumático
é uma resposta intensa, caracterizada por sintomas como sudorese, tremores, taquicardia, sensação iminente de morte ou de perda de controle (Marmar et al., 2006). Trata-se de uma condição de hiperexcitabilidade autonômica e emocional, indicativa de uma submodulação afetiva diante de uma ameaça extrema. Seus sintomas durante o trauma podem desempenhar um papel relevante na manutenção do medo, especialmente quando acompanhados da crença de que tais reações são indicativas de danos irreversíveis. Nesse contexto, o indivíduo pode interpretar os sinais fisiológicos como evidência de que algo fundamental mudou em seu funcionamento (ex. “Meu sistema nervoso está arruinado para sempre”), contribuindo para uma percepção de vulnerabilidade crônica (Bryant & Panasetis, 2001).
A
imobilidade tônica
é considerada o estágio final da cadeia de defesa do organismo. Essa cadeia começa com a imobilidade atenta — quando o predador ainda não avistou a presa —, segue pela fuga e, se esta falha, pela luta. Quando todas as opções se esgotam e a ameaça é percebida como inevitável e inescapável, a imobilidade tônica se instala. Trata-se de uma resposta reflexa, involuntária e reversível, caracterizada por imobilidade motora profunda, rigidez muscular, frequência cardíaca elevada, queda da temperatura corporal, supressão vocal e analgesia (ausência de dor). Embora a pessoa permaneça consciente, ela não consegue se mover, mesmo que deseje fazê-lo. Essa resposta é frequentemente acompanhada por sentimentos de vergonha e culpa, especialmente quando interpretada retrospectivamente como uma “falha” em reagir (Volchan et al., 2017).
A terceira reação a ser discutida é uma alteração da sensopercepção denominada
dissociação peritraumática
. Trata-se de uma resposta de supermodulação do afeto, frequentemente descrita como uma forma de desligamento psíquico diante de uma experiência extrema (Lanius et al., 2010). Sua manifestação pode incluir uma variedade de sintomas: perda da noção do que está acontecendo ou sensação de “apagão”; sensação de estar realizando ações sem as ter decidido ativamente; alteração na percepção do tempo; sensação de irrealidade — como se estivesse em um filme ou sonho; sensação de estar somente observando a si como um espectador; distorção na percepção da dimensão do próprio corpo; incapacidade de distinguir o que está acontecendo consigo mesmo do que ocorre com os outros; incapacidade de perceber acontecimentos durante o evento que normalmente não passariam despercebidos; e desorientação. A dissociação promove alterações nos processos de codificação e armazenamento da memória, resultando em sua fragmentação e compartimentalização. Como consequência, o resgate do conteúdo mnêmico torna-se prejudicado, dificultando a recordação do evento de forma coesa e linear (Spiegel & Cardeña, 1991).
Estratégias de manejo
Assim como o corpo entra em estado de alerta diante de um trauma, essas mesmas respostas podem ser reativadas quando a memória do evento é revivida. Durante o atendimento psicológico, seja nos primeiros momentos após o evento ou em intervenções posteriores, a observação cuidadosa desses sinais é fundamental para um manejo eficaz.
Primeiros cuidados psicológicos
Recomendados pela Organização Mundial da Saúde, os primeiros socorros psicológicos visam reduzir o sofrimento agudo e promover mecanismos adaptativos de enfrentamento a curto e longo prazo. Seus pilares incluem segurança (física e emocional), calma (estabilização emocional a partir da regulação da ativação neurofisiológica), autoeficácia (individual e coletiva), conexão (apoio social) e esperança (perspectiva de recuperação).
A seguir serão descritos alguns elementos para intervenção, baseadas no Modelo dos 6 Cs de Farchi et al. (2018) e nos cinco elementos essenciais de Hobfoll et al. (2007).
A comunicação com a pessoa em estado de choque emocional deve ter como princípio a segurança. Passar segurança na intervenção tende a modificar o “interruptor neurofisiológico” de ameaça para o “interruptor de proteção”. Elementos verbais e não verbais, como tom de voz, postura corporal e expressão facial devem estar compatíveis com um estado de conexão e apoio, assegurando que você, enquanto profissional, vai assumir o compromisso de estar ali até que a pessoa esteja estável. “Vou ficar com você até que alguém da sua confiança chegue” é um exemplo de fala que, nesse sentido, pode aliviar sentimentos de desamparo e solidão comumente presentes na cena do trauma.
Estratégias de regulação emocional também auxiliam o retorno do sistema nervoso autônomo a um estado de equilíbrio. Habilidades de
grounding (“aterramento”)
que auxiliam a reconexão com o momento presente e o entorno podem ser realizadas engajando os sentidos (prestar atenção visual, olfativa, tátil ou auditiva a elementos do ambiente, como sentir os pés no chão ou água gelada no rosto), através de exercícios cognitivos (nomear objetos do entorno, recitar um poema ou cantar uma música) ou respirando lenta e prolongadamente (Lanius et al., 2010).
Clareza na comunicação é outro elemento importante. Perguntas curtas que envolvam dimensões de tempo (“Há quanto tempo você está aqui?”), quantidade (“Quantas pessoas estão feridas?”) e escolhas simples (“Você prefere telefonar primeiro para os seus pais ou um amigo?”) ajudam a transpor a pessoa da impotência e dificuldade funcional passiva para estratégias de enfrentamento ativas e eficazes.
Promover continuidade auxilia na condução para fora do estado de confusão mental. Ajudar a construir uma narrativa cronologicamente linear do evento facilita o processamento da memória e a determinar um ponto final do evento, evitando futuras revivescências. Farchi et al. (2018) fornecem um exemplo: “Há três minutos você se envolveu em um acidente de automóvel. Agora, os socorristas estão atendendo os feridos. A ambulância deve chegar nos próximos minutos para que você seja transportado ao hospital. O acidente já passou!” (p.6). Importante esclarecer que esta estratégia exige experiência, já que falar sobre o evento de maneira pouco estruturada e catártica, como ocorre no
debriefing,
pode ter como resultado efeitos mais danosos do que benéficos (Forneris et al., 2013).
Conclusão
Eventos potencialmente traumáticos podem induzir alterações fisiológicas, cognitivas e emocionais que levam a estados de hipo ou hipermodulação afetiva, aumentando a chance de desenvolver TEPT. A identificação e o manejo correto dessas reações pode prevenir o aparecimento do transtorno ao restaurar o equilíbrio do organismo. Para tal, é necessário passar de um estado de ameaça ao de segurança, que pode ser promovido por meio de estratégias descritas neste artigo.
Como citar este artigo:
Macedo, T. F., Lobo, B. O. M., & Neufeld, C. B. (Jul., 2025).
Estado de Choque Emocional: Como Reconhecer e Manejar
. Blog do Secad.
Autoras:
- Tânia Fagundes Macedo
Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra, Doutoranda e Representante Discente pelo Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (PROPSAM/IPUB/UFRJ). Terapeuta certificada pela FBTC. Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Terapia do Esquema e Terapia do Esquema para casais. Pesquisadora com foco em trauma e violência sexual contra mulheres. Vice-coordenadora da equipe de Psicologia do Laboratório Integrado de Pesquisa em Estresse (LINPES/UFRJ). Supervisora Clínica. Professora em cursos de Pós-Graduação em TCC e Terapia do Esquema.
- Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo
Psicóloga e Mestra em Psicologia/Cognição Humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais e com Formação em Terapia do Esquema. Professora em cursos de Pós-Graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental, Terapia Cognitivo-Comportamental na Infância e Adolescência e Terapia do Esquema. Supervisora Clínica. Pesquisadora Colaboradora no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental - LaPICC da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP).
- Editora-chefe: Carmem Beatriz Neufeld.
Psicóloga. Livre docente em TCC pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUCRS. Fundadora e Coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP. Presidente da Federação Latino Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO (2019-2022). Presidente-fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências - AESBE (2020-2023). Bolsista Produtividade do CNPq.