LGPD e Psicologia: riscos legais e clínicos no uso da inteligência artificial em saúde mental

Nos últimos anos, observa-se uma revolução tecnológica com a inserção da Inteligência Artificial (IA) no cotidiano. Ferramentas que eram de acesso restrito, passaram a incorporar o dia a dia, promovendo transformações significativas na sociedade. Nesse sentido, o cuidado em saúde mental também vem sendo remodelado pela IA em diversas esferas (Thakkar et al., 2024).  
Chatbots e aplicativos têm se tornado cada vez mais comuns na psicologia (Meadi et al., 2025). Outras ferramentas baseadas em IA também vêm sendo desenvolvidas para apoiar e otimizar o trabalho dos profissionais da área, oferecendo funcionalidades como monitoramento digital do humor dos pacientes, geração automatizada de prontuários e suporte no planejamento de sessões e no raciocínio clínico (Farmer et al., 2024). 
Apesar das vantagens aparentes, torna-se imprescindível refletir sobre as implicações éticas, legais e clínicas associadas ao uso dessas tecnologias na prática psicológica, considerando especialmente os desafios relacionados à proteção de dados e à responsabilidade profissional. 
LGPD na prática: O que o psicólogo precisa saber?
O sigilo e confidencialidade de informações dos pacientes é respaldado pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005) há mais de duas décadas. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) (Brasil, 2018) estabeleceu parâmetros mais rigorosos para profissionais e instituições que lidam com informações classificadas como dados sensíveis, dentre os quais estão os psicólogos. 
Segundo a legislação, consideram-se dados sensíveis todas as informações que possam identificar o indivíduo e expor aspectos pessoais (como etnia, religião, informações genéticas, entre outras), requisitando elevado nível de proteção e tratamento ético (Brasil, 2018). Na psicologia, essa categoria abrange registros como prontuários, relatórios, formulários clínicos e diagnósticos, além de dados armazenados em plataformas digitais. 
As diretrizes da LGPD deixam explícito que é dever do controlador dos dados - nesse caso, o psicólogo - garantir o sigilo e confidencialidade desses, sob pena judicial em caso de vazamentos. Por outro lado, os titulares dos dados - pacientes -, possuem o direito de ter conhecimento acerca das informações armazenadas, finalidade dessas e qualquer tratamento - salvo em algumas exceções - deve possuir autorização prévia (Brasil, 2018). 
Diante do exposto, observa-se que a LGPD (Brasil, 2018) confere ao psicólogo a total responsabilidade diante dos dados armazenados dos pacientes e esse deve zelar para que não haja qualquer vazamento ou acesso por pessoas indevidas. Contudo, em um cenário no qual a IA se torna cada vez mais presente, como garantir que a utilização dessas ferramentas não comprometa o atendimento ou a segurança do cliente?  
Riscos clínicos e éticos no uso de IA
A maioria das IAs direciona suas respostas a partir dos dados gerais e/ou padrões que estão acessíveis aos algoritmos (Meadi et al., 2025). Este é um tópico particularmente sensível, considerando a pluralidade e subjetividade que emergem diariamente nos atendimentos psicológicos. Assim, é possível que esses recursos não consigam abranger todas as nuances e particularidades envolvidas no comportamento humano, aumentando estigmas, diagnósticos excessivos e reforçando preconceitos e estereótipos (Thakkar et al., 2024).  
Um exemplo disso foi a 
Tessa
, uma intervenção baseada em IA voltada à promoção de bem-estar que foi descontinuada após constatarem que poderia desencadear efeitos iatrogênicos em pessoas com transtornos alimentares (McCarthy, 2023). Esse caso ilustra a fragilidade dos sistemas de IA diante de cenários complexos, como os transtornos psicológicos, e a necessidade de atenção dos profissionais que os utilizam para garantir um atendimento ético e individualizado. 
Ainda, a IA pode trazer prejuízos ao profissional. O uso excessivo de tal tecnologia costuma levar a um processo de 
deskilling
, ou seja, a perda de competências críticas do psicólogo, tornando-o dependente das recomendações sugeridas (Farmer et al., 2024). Para além disso, mesmo com a utilização desses recursos, toda a responsabilidade inerente e quaisquer erros cometidos - como vazamento de dados ou intervenções danosas - são de responsabilidade ética e legal do profissional (Farmer et al., 2024). 
Como agir diante da tecnologia?
O CFP não proíbe o uso da IA mas deixa explícito que, caso isso ocorra, é dever do profissional integrá-la com ética e responsabilidade. Esses recursos podem otimizar o trabalho do psicólogo e potencializar os ganhos da terapia, porém é necessária uma avaliação criteriosa dos limites e riscos envolvidos (CFP, 2025a). 
A IA surge como um complemento e não deve substituir a atuação do profissional. Aspectos inerentes ao sucesso da terapia, como empatia, aliança terapêutica e flexibilidade diante das demandas do cliente, dificilmente podem ser reproduzidos em sua totalidade pelos programas. Assim, é imprescindível que haja julgamento humano durante o uso, garantindo a adequação às singularidades do paciente (CFP, 2025a; Mansurova, 2024).  
O psicólogo deve ter uma postura ética e crítica diante dessas tecnologias, considerando tanto o próprio uso profissional quanto o emprego por parte dos pacientes. Nesse contexto, recomenda-se que  haja uma psicoeducação acolhedora e informativa, expondo as possibilidades e limitações desses recursos. É importante destacar que a IA pode funcionar como ferramenta complementar no cuidado em saúde mental, mas jamais substituir o vínculo e a escuta presentes no processo terapêutico. Além disso, cabe ao psicólogo acompanhar e avaliar o modo como o paciente utiliza tais tecnologias, identificando eventuais repercussões negativas e, quando necessário, abordando-as no contexto clínico. 
Boas práticas e recomendações
Para minimizar riscos e garantir o cumprimento das medidas legais recomendadas, o psicólogo pode adotar um checklist de segurança ao utilizar IA (American Psychological Association [APA], 2025; Farmer et al., 2024; Mansurova, 2024; Thakkar et al., 2024): 
- Consentimento informado
 
O paciente foi totalmente informado sobre a utilização e tratamento dos seus dados através de IA? Houve uma autorização formal e explícita para o uso? 
- Privacidade e segurança dos dados
 
Os registros digitais estão armazenados de forma segura, como senhas fortes e autenticação de dois fatores? É possível anonimizar os dados? Terceiros conseguem ter acesso a essas informações? Quais as garantias de segurança dos dados fornecida pela IA utilizada? 
- Transparência
 
O psicólogo consegue compreender como funciona o algoritmo e processo de tomada de decisão na IA?  
- Auditoria ética
 
O psicólogo acompanha com frequência e intervém em possíveis riscos de vazamento de dados? 
- Supervisão humana
 
As recomendações feitas pela IA estão sendo supervisionadas? Há um equilíbrio entre a IA e julgamento humano nas tomadas de decisão clínicas? 
Considerações finais
As tecnologias baseadas em IA estão adentrando o campo da saúde mental, portanto o psicólogo deve estar atualizado sobre as diretrizes legais e éticas que circundam essa questão. Nos últimos anos, o CFP tem desenvolvido eventos e recomendações para orientar a atuação dos profissionais que utilizam IA no país (
CFP, 2025a
; 
CFP 2025b
). Outras organizações de saúde mental, como a APA, também fornecem orientações para auxiliar psicólogos a agirem com segurança nessa questão (
APA, 2025
).  
A LGPD representou um marco regulatório importante para a segurança digital e o uso de IA no Brasil. No entanto, no campo da saúde mental, o debate sobre sua aplicação ainda se encontra em desenvolvimento. O Projeto de Lei nº 2.338/2023, que trata do uso da IA em saúde, ainda não contempla de forma específica o cuidado psicológico, o que evidencia uma lacuna normativa nessa área. Espera-se que, em um futuro breve, sejam criadas legislações para regulamentar a IA no Brasil - como o 
AI ACT
, na Europa (União Europeia, 2024) -  assegurando o uso responsável, seguro e humanizado dessas tecnologias na saúde mental. 
Autoras
Beatriz Santos-Lima: 
Psicóloga pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Colaboradora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC-USP) da Universidade de São Paulo (USP) e do Cognition and Anxiety Disorders Research Laboratory (CADRe Lab) da University of Ottawa (uOttawa), Canadá. Atuou como estudante de Pesquisa Visitante na University of Ottawa (2025). Possui formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para Obesidade e Emagrecimento. 
Eloha Flória Lima Santos:
 Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC). Especialização em Psicologia da Saúde no Contexto Hospitalar com ênfase em Psicologia Pediátrica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP (HCFMRP-USP). Formação em Terapia Cognitivo-Comportamental e TCC para obesidade e emagrecimento. 
Carmem Beatriz Neufeld: 
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP da Universidade de São Paulo – USP e orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Psicobiologia do DP-FFCLRP-USP. Livre docente pela FFCLRP-USP. Pós-doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Doutora e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Formação em Terapia dos Esquemas pelo LaPICC-USP. Formação em Ensino e Supervisão pelo Beck Institute. Terapeuta Certificada em TCC pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas – FBTC. Psicóloga pela Universidade da Região da Campanha - URCAMP. Fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC-USP. Bolsista Produtividade do CNPq. Presidente Fundadora da Associação de Intervenções Psicossociais para Grupos - APSIG. Past-President da Federação Latino-Americana de Psicoterapias Cognitivas e Comportamentais - ALAPCCO. Representante do Brasil na Sociedade Interamericana de Psicologia - SIP. Ex-Presidente Fundadora da Associação de Ensino e Supervisão Baseados em Evidências – AESBE. Ex-Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas - FBTC.